quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Do peso de viver à leveza de criar: função social do ensino de dança hoje

Para mim dançar é estudar, é colocar a cara em livros além do estudo da performance, por isso vou colocar um texto bem legal da Isabel que fala sobre o ensino da dança nas escolas e como se dá o processo criativo. Vale a pena conferir!


Profa. Dra. Isabel A. Marques
Instituto Caleidos

Leveza aula

A pergunta que há anos venho me colocando e colocando às novas gerações, portanto, não é mais “o que”, mas “como” contribuir, nas aulas de dança, para que a situação social mundial não permaneça como está. Se a leveza é uma das respostas, “como” ministrar uma aula leve que não fuja à realidade pesada do mundo?

A primeira resposta que encontrei – e aqui tratarei só dela - parece ser simples: fazendo arte. A arte eminente em sala de aula é o escudo polido de Perseu, é o ato criativo articulado, consistente, fundamentado e relacionado ao contexto dos alunos. O processo criativo assim constituído tem o potencial de fazer com que a realidade seja olhada indiretamente e, assim, transformada. A “arte-escudo polido”, portanto, diferencia-se tanto dos exercícios quanto da arte panfletária engajada.

O processo criativo, que define a arte, é indeterminado, imprevisível, lúdico, não-linear, único, repleto de imagens, flexível e no tempo presente. Coincidentemente ou não, estas são também as vivências cotidianas do ser contemporâneo: não sabemos o dia de amanhã, quem não sabe “jogar” não consegue conviver. Olhar para frente é olhar para todos os lados, compostos por redes interconectadas. “Cada um é cada um”, como dizem os jovens, assolados por todos os lados por imagens internas e externas.

Ao contrário disso, nossas instituições de ensino, calcadas em modelos educacionais retrógrados, exigem dos professores e dos alunos de arte processos finalistas lineares, determinados a priori, previsíveis, universalizantes. Ou seja, a arte, que poderia estar aproximando os alunos da contemporaneidade do mundo, acaba por desvinculá-lo dele. Nossos alunos, que por meio da arte ensinada nas escolas poderiam levemente dar cabo da “Medusa”, são acorrentados pelo peso dos horários, das provas, das reclamações dos professores, dos planejamentos sem sentido, dos objetivos universalizantes, das avaliações sem processo, dos professores sem competência para ensinar dança. Pensemos nas aulas de dança.

Em geral, nas aulas de dança só fazemos exercícios enfadonhos e repetitivos. Mesmo que não sejam enfadonhos, ainda são exercícios, lineares, que nos colocam nas promessas futuras de melhor interpretação, ao invés de nos conectar com as possibilidades presentes de criação, com sentido pessoal e social. Sem, absolutamente, negar a importância do preparo corporal para que se realize o ato criativo, o exercício pelo exercício é tão pesado que não permite ao pássaro voar.

Em contrapartida, às vezes nos largamos aos experimentos soltos e sem sentido estético, quando poderíamos estar trabalhando o improviso como criação artística. O improviso em sala de aula que ocorre somente em prol das sensações corporais e dos desbloqueios emocionais é tão leve como a pluma e também não permite ao pássaro voar.

No que diz respeito às relações professor-aluno, em geral seguimos instruções, propostas, sugestões, “facilitações” do professor, quando poderíamos dançar com ele, assisti-lo dançando, em sala de aula. Tornando-se, não professor, mas artista-docente, passa a ser “fonte viva e interlocutor entre os mundos da dança e da educação” (Marques, 1999, p.119). O professor que se permite compartilhar a dança que cria e interpreta em sala de aula, articulando-a com a dança dos alunos e da sociedade, ganha de presente das ninfas o capacete, as sandálias aladas, a espada e o espelho de Perseu, está munido para matar a Medusa.

Em situações opostas a esta, ainda são frequentes as aulas de dança em que os alunos obedecem e copiam modelos (voluntariamente ou não), sofrem para aprender repertórios, martirizam-se para chegar às virtuoses (das piruetas do balé às quedas da nova dança). Ou seja, dançamos a história (repertórios prontos – de Giselle ao Maracatu), ao invés de recriarmos a história. Carregamos o peso da história, quando poderíamos re-significá-la.


Para terminar, pelo começo


Na grande maioria das vezes, as aulas de dança carregam o peso do passado, ou então a leveza pluma do mundo contemporâneo. Em nenhum dos casos, a arte em sala de aula é efetivamente criação, problematização, re-significação do peso necessário para voarmos como pássaros e termos a possibilidade de viver em um mundo diferente. Mas, parafraseando Mário Quintana, poeta gaúcho, “o mundo passará, eu passarinho”.

.........Texto da aula inaugural do curso de “Pedagogia da Arte” da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, proferida em Montenegro no dia 10 de abril de 2002 por Isabel Marques e posteriormente publicada na Revista da FUNDARTE. ANO I, Vol. I/II, no. 02/03.

Referências bibliográficas
Calvino, I. (1990). Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras.
Marques, I. (1999). Ensino de dança hoje: textos e contextos. São Paulo: Cortez.Abrão, B. e Coscodai, M. (org) (2000).
Dicionário de Mitologia. São Paulo: Editora Best Seller.

Um comentário:

LucianaArruda disse...

excelente! me sinto assim narelação aluno professor, principalmente depois do projeto social... adorei!
beijão
^^